Filix Jair
10.1.03
 
Com a palavra, Filix Jair:
“Escrevi esta canção há quase dez anos atrás. Como sempre, depois de um caso amoroso. Por que será que as situações amorosas e afetivas produzem climas que incitam à musicalidade, à canção? Estranhas superposições de linhas se produzem então e a canção como que se instala automaticamente na pele, faz-se voz a partir de uma involuntária diminuição inibitiva. Perto de casa, através da noite, costumava ouvir alguns amigos cantando, cada qual sua canção; disso eu gostava, mas não deixava de achar demasiadamente doméstico – talvez por isso tenha decidido partir mais cedo do que de costume. Canções de amor como um sub-gênero; ou nem isso. Repetir refrões. Repetir refrões. Repetir refrões. Neles está costurado um gozo, ou um êxtase, ao mesmo tempo pessoal e coletivo (“ah! há dois mil anos, aquelas tardes em catarse”), mas principalmente uma forte trança mnemônica que atravessa o tempo congregando compactação e repetição (sem redundância…). Agentes de um gozo coletivo [“gostar de quem não gosta de mim / ah insensatez que você fez”] via forma da canção popular – modalidade nada mais que percussão e fala, ritmo e expansão harmônica. O olhar também deve ser arrancado da dimensão doméstica, você me disse isso outro dia, não foi? Ainda permaneço cheio de dúvidas em nomeá-los (ele e ela – vocês dois, um de cada vez) e fixá-los como interlocutores – amigos? – para esta prosa descosturada, linhas de matriz eletrônica. Aos poucos conto o que já se passou (trarei exemplos) e invento o que quero que venha a se fixar nas estranhas entranhas externas extremas de êxtase e exercício que me formam em descontínuo.”


eu te queria
letra& música: Fílix Jair (1993)

só peço que você não me impeça
de dizer que eu te amo
eu te amo e vou te amar prá todo sempre

e agora a nossa história pobre
história rica história
é a memória da memória
uma jóia delirante

e mesmo que você venha contar
que nesse dia esqueceu de me ligar
e me chamar para brincar

desculpa não é problema
eu vou sempre te gostar
de te beijar de te morder
de te amar e te comer

mas aquela hora já passou era de noite
era de dia eu te queria e te queria
te queria e te queria

eu te queria te queria
te queria te queria
te queria era de noite era de dia
eu te queria

de todas as muheres que amei
eu sempre amei com muita força e com prazer
e com calor e intensidade

você não entendeu a insistência e a presença
e a conversa e a brincadeira e o namoro
e a nossa história

nunca nunca nunca
vou querer só lamentar
eu quero rir e não chorar
quero seguir e não fugir

se um dia no futuro eu te encontrar
eu já nem sei o que falar
e se falar
não vou falar vou te beijar

8.1.03
 
Movimentar-se dentro do terreno da chamada música popular não é exatamente uma obsessão para Filix Jair. Não se pode nem mesmo dizer que seu espaço de trabalho seja apenas este, a área da canção. O interesse latente é de expansão, mas muitas vezes se sobressai uma rotina de hábitos praticados sem interrupção há mais de uma década. Pois este processo foi mesmo se impondo até ocupar bastante espaço em sua vida, processo que se deu ao que parece com pouca vontade de distanciamento; processo que de repente já se configurava como “envolvente”, “abrangente”, “insistente” (palavras suas). O que se ouviu naquela noite (e que FxJ não procurou esconder) foi a expressão: “Não sinto necessidade de tocar instrumento qualquer” – mas o que poderia ser esta coisa qualquer? Um “instrumento” abrange dezenas de sentidos, não há dúvida. “Sinto-me melhor protegido com um”, confidenciou à sua principal amiga. Mas por que e para que? A tese daquela noite antes do encontro, apresentada em local público (não sem muitos embaraços de parte a parte) foi de que todo e qualquer ready-made pode ser reconfigurado em instrumento de percussão. Esta conversa iniciou-se a partir do depoimento de FxJ de que os instrumentos seus preferidos seriam aqueles “verdadeiramente percussivos” (como assim?); e que estes “poderiam ser toda e qualquer coisa desde que minimamente sólida, minimamente material: coisa batendo no corpo ou coisa batendo em coisa”. “Ritmistas duchampianos” soaria pedante (para um pequeno e desconhecido grupo de pagode que percorreu o circuito de clubes e bailes da Baixada) e nunca foi seu desejo expressar afetação em ambiente de descontração e alegria (locais musicais intensos). Mas a formulação – logo em início de seu processo de “colocar o pé na estrada” (como fazem quase todos os músicos quando correm atrás de público em apresentações seguidas em várias cidades) – de que “ready-made é coisa percussiva” segue sendo instigante e constante – espécie de africanização tardia do inventor e enxadrista francês ou mesmo efeito retardado das rousselianas “Impressions d’Afrique” que tanto o atrairam. De qualquer modo, o continente africano é uma das paradoxais portas de abertura para o século XXI e Filix Jair promete entrar em contato para prestar mais esclarecimentos iluminadores acerca da série “percussão já pronta”, trabalho derivativo das vivências e inquietações que acabamos de expor (ele gostaria de voltar à África). Esta narrativa ainda será desmembrada, pois impressões passadas colhidas a muito custo em conversas fragmentadas aqui e ali serão complementadas – FxJ assim o prometeu – com novos depoimentos. Sobretudo com o oferecimento de apresentações sonoras que evidenciem as indagações que nos traz. Talvez num domingo à tarde. Talvez na noite de terça. Pode ser que apareça em programas de rádio ao meio-dia. Mas todos concordam que terá que ser ouvido, visto, falado e percebido, sem o que se corre o risco de resvalar no campo de uma mitologia entediante condenada ao desaparecimento precoce, desde sempre.

7.1.03
 
Flix Jair nasceu na segunda metade do século XX, em algum bairro suburbano do Grande Rio. Passou já dos trinta anos, mas ninguém sabe ao certo. Olhos escuros, cabelo crespo, pele escura, estatura mediana, nem gordo nem magro. Desde cedo manifestou inclinação pela música ritmada, do tipo que se ouve por aí nos arredores. Foi visto muito pequeno fabricando instrumentos de percussão inusitados e participando discretamente de rodas de samba e outros encontros coletivos de sons quaisquer. Gosta de ouvir as palavras envoltas em melodia e ritmo, processadas em vozes de todos os tipos. Envolveu-se em histórias que exigem discrição e procura não falar muito de si mesmo. Atravessa a cidade todas as madrugadas (a pé, de ônibus ou táxi), deslocando-se de um ponto a outro: nunca é encontrado aqui ou ali – sempre se tem que deixar recados, nem todos respondidos. É preciso ter sorte e senso de oportunidade para conversar com ele, não por outro motivo senão sua movimentação constante e falta de capacidade de organizar a agenda displicentemente administrada. Horários de trabalho inconstantes, empregos temporários dos mais diversos tipos (oficina mecânica, burocracia bancária, empregado e posteriormente gerente de pequeno comércio, revisor, programador visual, produtor gráfico, redator de publicidade, gerente de barco pesqueiro, guia de turismo, etc) somados à atividade bastante irregular de compositor garantem a sobrevivência cotidiana. Dizem que são três os seus filhos, um fora do Estado e uma quase casando. Vida afetiva complexa, não escapou aos dramas existenciais típicos nem às novelas banais do dia a dia. Não se pode dizer que seja popular, devido a uma forte e estranha resistência interna de origem familiar; costuma repetir: “posso desaparecer a qualquer momento”, frase que diz ter ouvido de seu pai. Alguns insistem em encontrar em seu trabalho traços ‘retrô’, excessivamente ancorados numa estética sonora ‘dejá vu’, o que não é incorreto. Sabe-se que responde a comentários principalmente através de entrevistas no rádio, quando pode se expressar de viva-voz. Não adianta procurar motivos para esta quase imobilidade; o represamento é índice não apenas de sua trajetória pessoal mas resultado dos fatos em geral (parada de sucessos, por exemplo). Costumava freqüentar um programa de rádio que recentemente saiu do ar, na faixa AM, junto com velhos e novos colegas de aventuras sonoras. Em uma de suas últimas e bissextas apresentações acertou contrato informal para produção de videoclipe, utilizando algumas imagens de arquivo recém-encontradas. Fracassos e sucessos desconhecidos incluem “Superfícies”, “Na beira da praia”, “Te queria”, “Lágrima na mesa”, “Leoa gloriosa” e “Para mim”, entre outras.

 
Veremos aqui o registro (quase) diário da vida deste curioso personagem da vida contemporânea, o compositor e multiagente brasileiro Filix Jair, autor de um número igual de sucessos e fracassos.

 
Com estas frases inicio estes registros, simples sombras e clarões acerca de um susto que me persegue há muitos anos e que somente agora começa a tomar formato e ser elaborado como estrutura localizada e arquitetada nos limites mais externos de meu corpo-mente (reviramento constante e inconstante que se processa continuamente enquanto vivemos). Bem vindos a estas aventuras, minhas e nossas...


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